domingo, 30 de agosto de 2009


Já estávamos no fim de mais uma jornada de trabalho. Passava-se das vinte e três horas de uma monótona segunda-feira, dia geralmente tranquilo no que tange à criminalidade violenta, cujo combate era nosso principal mister. Patrulhávamos o Bairro Nova Pampulha, numa região conhecida como “mangue seco”. Tal denominação não foi escolhida por acaso. As ruas do local eram todas de terra; parte delas intransitáveis, devido a enormes crateras provocadas pela voracidade das águas pluviais. Os lotes lindeiros lembravam a vegetação da caatinga. As residências eram construídas precariamente, a maioria delas não possuía reboco, o que contribuía para o aspecto desértico do local.

Neste cenário nada inspirador, ocorreu uma situação cômica, envolvendo uma guarnição do GIEAR (Grupo de Intervenção Estratégica em Áreas de Risco); mais precisamente aquela estava sob meu comando. Quando descíamos a rua vinte e cinco, uma das poucas que era possível percorrer embarcado na viatura, deparamos com um sujeito franzino, alto, moreno escuro (não é eufemismo, ele realmente não era negro), trajando roupas simples e empurrando uma bicicleta, a qual era tão velha que só servia mesmo pra empurrar.

O motorista da equipe, Soldado Marcel, menciona: “Vamos abordar?”. Nosso patrulheiro, Cabo Araújo, acrescenta: “Só pra não perder o costume, nesta hora, andando na favela, tem mais é que tomar geral”.

Mesmo acreditando não se tratar de um suspeito em potencial, decido pela abordagem.

O suspeito estava do lado esquerdo da viatura, nesse caso quem efetua o “enquadramento” é o motorista ou o patrulheiro. O Soldado Marcel encarregou-se da missão: “Pare. Larga a bicicleta. Coloca as mãos na cabeça. Abra as pernas”. O abordado acatou as ordens sem pestanejar. O militar iniciou a busca pessoal.

Cumpre registrar que um pouco antes do fato ora narrado, Marcel havia dito: “Pô Sargento, nós já estamos indo embora e não prendemos ninguém ainda”.

Marcel é daqueles policiais que não conseguem dormir se passar um dia sem tirar um infrator das ruas. Cansei de tentar persuadi-lo de que o dia que trabalhamos pouco é porque trabalhamos bem, haja vista que nossa missão é prevenir.

Evidentemente, interpretei a pronúncia do soldado como brincadeira, contudo comecei a me preocupar no instante que Marcel passou a interpelar o suspeito, dando a entender que realmente não queria ir embora sem prender alguém.

- Seu Nome?
- Abraão - respondeu o jovem, já com as pernas trêmulas.
- Abraão. Então foi você quem traiu Jesus - afirmou o militar, aumentando o tom de voz.
- Não, senhor, eu sou Abraão, o Rei das Nações.
- Que rei o quê, tá achando que eu sou otário, foi você mesmo que mandou enforcar Jesus.

Neste momento, preparava-me para apartar a discussão quando percebi a cara de deboche do Soldado Marcel e constatei que ele estava de gozação. Por outro lado, o Cabo Araújo, acreditando que aquilo terminaria em “desacato” utilizou-se de seus vastos conhecimentos bíblicos, pois é evangélico praticante, e disse : “O rapaz está certo. Quem traiu Jesus foi Judas, e Abraão foi mesmo o Rei das Nações. E tem mais, Jesus não foi enforcado, mas sim crucificado”.

Assim, Marcel soltou o suspeito e todos nós começamos a rir do episódio e ainda tivemos uma pequena aula litúrgica, haja vista que o então suspeito também era evangélico fervoroso.

Não sei o que aconteceria se o nome do rapaz fosse Judas...

Fim

Autor: Nivaldo de Carvalho Júnior, 3º Sgt PM - obra escrita em 04/01/2006

Nota: Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, fatos e lugares são frutos da imaginação do autor e usados de modo fictício. Qualquer semelhança com fatos reais ou qualquer pessoa, viva ou morta, é mera coincidência.

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